O consenso ao longo da história
Do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), em declaração a uma repórter da Rede Globo na última terça-feira (28/11): “O ideal é o consenso”.
Calheiros referia-se às negociações de bastidores com a oposição acerca da escolha da presidência da instituição para o início do segundo mandato de Lula. No mesmo dia o PFL acenava com a possibilidade, que se concretizou, de lançar o senador José Agripino Maia (RN) para o comando da Casa. O partido de Bornhausen alega que tem a maior bancada e, por isso, a ele deve caber o posto. Se os dois partidos, um na base governista e o outro na oposição, vão realmente chegar a um acordo, nem Brasília sabe. Mas a frase do peemedebista, dentro ou fora do contexto, me chama a atenção. Ao longo da história das doutrinas e teorias políticas, o consenso, o diálogo, o acordo (os tratarei aqui com a mesma significação, que me perdoe Houaiss) não foram igualmente vistos como o ideal a se atingir. Detenho minha análise em três pensadores que viam a ação de formas diferentes: Maquiavel, Rousseau e Hannah Arendt.
Nicolau Maquiavel, dos três acima citados, é aquele que foi mais radicalmente contra a idéia de consenso. Na verdade, o italiano da Renascença não era contra o consenso, mas acreditava que era impossível alcançá-lo em virtude do caráter dos homens. O autor de O Príncipe (1513) referia-se às pessoas como “ingratas, inconstantes e falazes, ansiosas por evitar perigos e ávidas de ganhos, e enquanto lhes sois útil estão do vosso lado, oferecendo-vos seu sangue, seus bens, sua vida e seus filhos enquanto o perigo está distante...quando ele se aproxima, porém, vos dão as costas.” Em outra passagem de sua obra, diz que os príncipes devem manter a palavra apenas quando lhes é vantajoso, devem ser dissimulados e às vezes desleais. Ora, se os indivíduos possuem tal personalidade e os soberanos devem agir dessa forma, o diálogo, além de não ser benéfico, é impossível.
Maquiavel foi o verdadeiro nome da realpolitik. Tratando o mundo com ceticismo e realismo, até pessimismo, excessivos, ele preocupava-se com o fim e não com os meios. Dedicou sua obra e seu pensamento a favor da Unificação da Itália e, para obtê-la, não importaria que os meios não fossem os mais dignos de aplausos. O que valia era o fato de que o fim era extremamente louvável.
Um dos pensadores mais influentes do Iluminismo, o suíço Jean-Jacques Rousseau, tinha uma visão bem diferente da de Maquiavel sobre o consenso. Tal questão, na obra do teórico, esteve inserida na doutrina do “contrato social”. Por esse sistema, o cidadão abre mão de certas coisas que lhe pertencem para conseguir uma contrapartida do Estado.
Na obra O contrato social (1762), Rousseau reivindica um novo contrato, firmado sobre bases diferentes do atual. Isso porque o pensador acreditava que o homem era bom e feliz em seu estado natural e fora corrompido pela civilização baseada na propriedade privada (idéia que faz com que ele seja considerado um dos precursores do socialismo). Assim, os indivíduos trocam seus direitos por falsos valores, configurando-se um contrato social fraudulento. O contrato social idealizado pelo autor deveria emanar do indivíduo, sendo que ele abriria mão de seus direitos em troca de uma liberdade verdadeira que estivesse de acordo com as leis impostos por eles a eles mesmos e que chegariam a um consenso. Dessa forma, para Rousseau o consenso teria o papel de estabelecer as leis entre os homens, as quais não seriam impostas por nenhum dirigente poderoso, mas levariam à realização da vontade geral, diferente da vontade do indivíduo e da soma das vontades particulares.
Entretanto, para Rousseau, a vontade geral pode falhar, pois a maioria das pessoas precisa de um líder que promova seus interesses. Bertland Russel, com base nessa última idéia de Rousseau, considerou-o um dos precursores do totalitarismo.
Por falar em totalitarismo, poucos filósofos tão bem estudaram esse sistema de governo quanto a alemã Hannah Arendt, uma das principais teóricas do século XX. Em As origens do totalitarismo (1951), ela procurou estabelecer as bases pelas quais os regimes totalitários (Hitler e Stálin) se firmam, e diferenciá-los de autoritarismo e ditaduras.
Seriam condições ao totalitarismo o apoio irrestrito das massas pelo uso abusivo da propaganda estatal, o imperialismo, a burocracia, as polícias secretas e o poder sustentado pelo uso do terror.
Já em As origens do totalitarismo, Hannah faz menção à noção de consenso, mais precisamente ao consenso legal, ou consensus iuris, de Cícero. Para a autora, os monstruosos crimes dos regimes totalitários partiram, principalmente, do rompimento consciente do consensus iuris que, como lei internacional, constitui o mundo civilizado da modernidade por ser a base das relações internacionais. Hannah diz que tal consenso é fundamental e básico, mesmo porque um criminoso só pode ser julgado com justiça se dele fizer parte.
Mas a questão do consenso em Hannah Arendt aparece definitivamente na A Condição Humana (1958). No livro, a pensadora enfatiza o papel da política como ação e como processo na busca da liberdade. Para ela, a vida política só existe em sociedade (na dimensão humana do vita activa) e o consenso é essencial e imprescindível para a conquista da liberdade e de outros valores. Como não existem normas fixas, nem uma verdade universal, tudo depende do acordo e do diálogo.
Assim, entre Maquiavel, Rousseau e Hannah Arendt, a filósofa alemã é, sem dúvida, aquela que concordaria com a frase de Calheiros de que o ideal na política é sempre o consenso.